Busca sem resultado
jusbrasil.com.br
18 de Abril de 2024

Esperança Garcia, a escravizada que ousou advogar em 1770



Por Inês Virgínia Soares e Melina Girardi Fachin

O mês de novembro termina com um reconhecimento há muito pleiteado à OAB Federal pelos movimentos negros, especialmente de mulheres: o título de primeira advogada do Brasil à Esperança Garcia. Nos debates eleitorais e nas comemorações do bicentenário da independência, uma Carta escrita em 6 de setembro de 1770, por esta mulher negra e escravizada, foi pouco lembrada, apesar de chamar atenção por sua atualidade.

Esperança Garcia nasceu no Brasil e quando escreveu a missiva era jovem, casada, mãe de dois filhos vivos, católica e alfabetizada. Enfrentava a violência praticada contra si e seus filhos sozinha; vivia longe de seu marido, por imposição do regime escravocrata. Desde a descoberta de sua carta-denúncia, foi considerada a primeira advogada brasileira, pela sua noção de direitos e de como reivindicá-los.

Esperança viveu no século 18, no nordeste brasileiro, em fazendas localizadas onde hoje estão os estados nordestinos do Piauí e Maranhão. Sua existência veio à tona apenas em 1979, quando o historiador Luiz Mott descobriu, no arquivo público do Piauí, cópia de uma carta escrita por Esperança.

Esse documento é considerado um dos registros mais antigos que uma pessoa escravizada fez sobre a sua situação. Tinha o formato de petição e era dirigida a Gonçalo Lourenço Botelho de Castro, presidente da Província de São José do Piauí, para reclamar os maus-tratos sofridos por ela e seu filho e a violação à liberdade religiosa. Dizia ela:

"Eu sou uma escrava de Vossa Senhoria da administração do Capitão Antônio Vieira do Couto, casada. Desde que o capitão lá foi administrar que me tirou da fazenda algodões, onde vivia com o meu marido, para ser cozinheira da sua casa, ainda nela passo muito mal. A primeira é que há grandes trovoadas de pancadas em um filho meu sendo uma criança que lhe fez extrair sangue pela boca, em mim não posso explicar que sou um colchão de pancadas, tanto que caí uma vez do sobrado abaixo peiada; por misericórdia de Deus escapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confessar há três anos. E uma criança minha e duas mais por batizar. Peço a Vossa Senhoria pelo amor de Deus ponha aos olhos em mim ordenando digo mandar ao procurador que mande para a fazenda de onde me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha. De V.S.ª sua escrava, Esperança Garcia."

A carta trouxe à tona a existência, em meados do século 18, de mulheres escravizadas alfabetizadas e suficientemente "politizadas" para reivindicar direitos para si e outras na mesma situação, denunciando às autoridades os desmandos de prepostos. Esperança manifesta preocupação comunitária, o que se identifica com a luta contemporânea das mulheres negras, faveladas, indígenas, quilombolas e de comunidades tradicionais.

Da descoberta da carta em 1979 até a primeira década dos anos 2000, houve homenagens esparsas à Esperança. Foi apenas partir dos anos de 2010 que ocorreu um reposicionamento da memória coletiva, alçando Esperança Garcia à liderança negra, num mesmo patamar de protagonistas emblemáticos na luta contra o regime escravagista, como Zumbi dos Palmares, Luiz Gama, Luísa Mahin, Teresa de Benguela, Dandara dos Palmares, Zeferina, dentre outros.

Desde a década de 1970, as comemorações do dia da consciência negra eram no 20 de novembro, em homenagem a Zumbi dos Palmares, já que esse é o dia atribuído à sua morte, em 1695. No âmbito nacional, o dia 20/11 foi instituído pela Lei nº 12.519, em 2011. Rompendo esse consenso, a lei do Estado do Maranhão escolhe o dia 6 de setembro, data da carta de Esperança, como o Dia da Consciência Negra.

Apesar da divulgação da carta, ainda faltava à Esperança uma representação física, um corpo. Em 2000, houve a instalação de uma escultura de barro em tamanho real, do artista Charles do Delta, na Central de Artesanato Mestre Dezinho, em Teresina. A estátua é de uma mulher de estatura mediana, certa 1,60 de altura, sentada, com os pés descalços e acorrentados, mas com as mãos livres escrevendo a carta. Ao lado, há outro momento de barro com o texto da carta.

Em 2017, o Memorial Zumbi dos Palmares, espaço dedicado à cultura negra em Teresina, que funcionava desde 2007, foi reinaugurado como Memorial Esperança Garcia. A mudança aconteceu após a publicação da pesquisa intitulada "Dossiê Esperança Garcia: Símbolo de Resistência na Luta pelo Direito", realizada pela Comissão da Verdade da Escravidão Negra da Ordem dos Advogados do Brasil no Piauí (OAB-PI).

Este documento serviu de base para a concessão, pela OAB-PI, do título simbólico de primeira mulher advogada do Brasil à Esperança Garcia, em 2017; e a apresentação, em 2019, de Projeto de Lei para inscrever o nome de Esperança Garcia no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria.

As homenagens não se restringiram ao Piauí. Há diversos coletivos e movimentos sociais que usam o nome Esperança Garcia como símbolo de luta pelos direitos humanos.

A forte presença do passado colonial e escravocrata é um dos pontos mais relevantes para compreensão do resgate da memória de Esperança Garcia e que urge ser (re) pensada neste bicentenário da independência brasileira. Isto porque dentre tantas pautas ligadas à equidade racial, a luta por igualdade de oportunidades e por garantias de trabalho digno indicam a dificuldade, no Brasil, de se aniquilar os resquícios da escravidão, a demonstrar como a nossa independência é seletiva e intersecional.

A carta de Esperança Garcia encontra espaço no Estado democrático de direito brasileiro não somente por lembrar a necessidade de superar de vez o racismo estrutural, mas também acreditar que instituições e pessoas públicas têm compromissos com valores maiores. Assim que a independência substancial ainda se faz futuro para muitos que herdam este passado escravocrata de Esperança.

A garantia constitucional de igualdade não foi suficiente para eliminar ou sequer arrefecer o racismo. Apesar de legalmente abolida há quase 130 anos no país, e em plena dissonância com o projeto constitucional, a escravidão ainda é realidade presente por meio de formas contemporâneas mais ou menos explícitas de racismo e discriminação, denunciando situação sistemática e estrutural.

Esta desigualdade da realidade brasileira estampada sobre a alcunha da discriminação estrutural foi novamente denunciada na penúltima condenação brasileira na Corte interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) – o caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus Familiares vs. Brasil.

O caso é exemplar das múltiplas violações que se observam na contemporaneidade que espelham o racismo estrutural. Este tem a sofisticação de operar dentro do ordinário, sem chamar atenção para o desvio, desarranjo ou anormalidade comportamental, sendo conjuntos de práticas inconscientes, conscientes e até mesmo institucionalizadas, que se articulam sofisticadamente de modo a normalizar relações públicas e privadas.

As circunstâncias remontam à explosão, ocorrida em dezembro de 1998, em uma fábrica de fogos de artifício na cidade de Santo Antônio de Jesus. Na tragédia, quase 70 pessoas foram vitimadas, em sua maioria mulheres, muitas jovens, algumas crianças, todas em especial condição de vulnerabilidade. A sentença da Corte IDH constatou que a situação de extrema pobreza obrigava as vítimas a se submeterem a trabalho extremamente perigoso, na fábrica de fogos, e com uma remuneração absolutamente desproporcional à periculosidade e à insalubridade do trabalho.

No caso da fábrica de fogos se reconhece situação de discriminação estrutural oriunda da vulnerabilidade comum, marcada pela pobreza, desigualdades regionais e pouco acesso a emprego. Tudo isso é entrecortado por um inevitável fator de raça, marcante na região da fábrica de fogos que explodiu. É que, como destacado no julgamento do caso, o recôncavo baiano é uma região povoada por descendentes de pessoas escravizadas que, embora livres e no exercício de sua cidadania desde a abolição da escravidão em 1888, não tiverem oportunidades e acesso a trabalhos dignos, nem suficiente atenção do poder público para implementação de plena independência para que possam fazer as escolhas de suas vidas.

Neste julgamento, um dos juízes apresentou um voto separado no qual ressaltou que o Brasil, ao não considerar as vulnerabilidades, herdadas do passado escravocrata, promoveu tratamento discriminatório em razão da posição econômica dos trabalhadores. Estas desigualdades socioeconômicas se afloram nas complexidades das interseccionalidades, com marcadores raciais e de gênero bem definidos.

Para esse caso, como garantia de não repetição, a Corte determinou que o país adotasse uma série de medidas de caráter estrutural, dentre as quais: a criação de alternativas econômicas para a inserção econômica e laboral das vítimas e familiares da explosão; e a criação e execução de um programa de desenvolvimento socioeconômico. A garantia de não repetição não versa sobre a tragédia de morrer numa explosão em seu local de trabalho, mas em ter opções de sustento e escolhas de atividades seguras em sua comunidade.

Foi a primeira vez que o Brasil foi condenado a adotar medidas que contemplem as "chances perdidas", termo que, na doutrina de direitos humanos, está relacionado à impossibilidade de execução do projeto de vida, de estabelecer expectativas e ter meios para atingi-las. Ou seja, medidas para alcançar a plena independência existencial — com especial enfoque das interseccionalidades — que agudizam o aspecto das vítimas: mulheres negras e pobres, cujo destino era traçado desde muito novas.

É bom lembrar que a condenação chega em um momento complexo da conjuntura brasileira em relação à proteção dos direitos humanos. As políticas executivas têm sido pautadas por uma agenda atentatória à proteção dos direitos humanos, cabendo às instituições do sistema de justiça fazer o referido contrapeso no sentido de se colocar como um "contra poder" no resguardo dos direitos, sobretudo dos grupos mais vulneráveis.

A memória de Esperança lança luzes para a insuficiência dos mecanismos institucionais já implantados para coibir práticas de trabalho degradantes, indicando a urgência de eliminar o racismo - na sua face mais nefasta que é a escravidão contemporânea - das relações no Brasil de hoje. Além disso, os maus-tratos e as violações descritas na carta guardam semelhanças com as denúncias feitas atualmente no Brasil, por mulheres que, apesar de livres, permanecem igualmente vulneráveis e temem pela integridade de seus filhos.

Sabemos que as diferentes iniciativas a partir da carta de Esperança conseguiram despertar na coletividade sentimentos que contribuíram para melhor compreensão da violência da escravidão; e a narrativa na primeira pessoa tem o poder de emocionar ao traduzir a vivência coletiva em uma "memória possível".

Quanto mais refletimos sobre a Carta de Esperança e sua confiança nas instituições, encontramos razões para acreditar. A memória de Esperança está aí para antecipar o futuro.

A reflexão aqui exposta é um resumo de um paper que integra a recém lançada edição intitulada "Patrimónios difíceis e políticas públicas de memória", da revista Lusotopie XXI (1), 2022, sob a direção das professoras Maria Leticia Mazzucchi e Paula Godinho.

Autoras: Inês Virgínia Soares e Melina Girardi Fachin

Inês Virgínia Soares é desembargadora federal no TRF da 3ª. Região (SP). Doutora em direito pela PUC-SP, com pós-doutorado no Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP). Especialista em direito sanitário pela UnB (Universidade de Brasília). Autora do livro "Direito ao (do) Patrimônio Cultural Brasileiro" (Ed. Forum).

Melina Girardi Fachin é professora dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e coordenadora do Núcleo de Estudos em Sistemas de Direitos Humanos (Nesidh) e do Centro de Estudos da Constituição (CCONS), ambos da UFPR.

Fonte: Revista Consultor Jurídico, 29 de novembro de 2022, 11h13

  • Sobre o autorAdvogada e uma apaixonada pela ciência jurídica.
  • Publicações3160
  • Seguidores455
Detalhes da publicação
  • Tipo do documentoNotícia
  • Visualizações26
De onde vêm as informações do Jusbrasil?
Este conteúdo foi produzido e/ou disponibilizado por pessoas da Comunidade, que são responsáveis pelas respectivas opiniões. O Jusbrasil realiza a moderação do conteúdo de nossa Comunidade. Mesmo assim, caso entenda que o conteúdo deste artigo viole as Regras de Publicação, clique na opção "reportar" que o nosso time irá avaliar o relato e tomar as medidas cabíveis, se necessário. Conheça nossos Termos de uso e Regras de Publicação.
Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/esperanca-garcia-a-escravizada-que-ousou-advogar-em-1770/1711929099

0 Comentários

Faça um comentário construtivo para esse documento.

Não use muitas letras maiúsculas, isso denota "GRITAR" ;)