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19 de Abril de 2024

Reduzir a segurança do trabalhador não ajuda a economia

O governo federal comunicou recentemente que pretende revisar as normas regulamentadoras de saúde e segurança do trabalho. A justificativa seria desburocratizar o trabalho no Brasil visando criar mais empregos.

Inicialmente, a alegação de diminuição da proteção trabalhista para criar empregos é uma repetição de outras iniciativas que não geraram qualquer impacto nos índices de emprego no Brasil. A reforma trabalhista se fundou nesse motivo e, passados quase dois anos de sua implementação, o índice de desemprego em fevereiro de 2019 era o maior dos últimos sete anos[1]. Não funcionou, portanto.

A regulamentação da segurança do trabalho se funda na redução dos riscos do trabalho por meio da normatização (CF, artigo , inciso XXII), na participação dos trabalhadores e empregadores nos colegiados públicos que discutam e deliberem sobre seus interesses profissionais (CF, artigo 10º) e no poder regulamentar da União (artigo 87, parágrafo único, inciso II). No plano internacional, a normatização do trabalho é prevista em diversos documentos da Organização Internacional do Trabalho como sendo uma atribuição conjunta dos governos, dos empregadores e trabalhadores, mediante as discussões e deliberações que se dão de forma tripartite, com representantes das três partes.

As normas regulamentadoras se apresentam, deste modo, como densificação e concretização de diversos princípios constitucionais, que são o direito à vida, à segurança, à saúde, ao meio ambiente em geral e ao de trabalho que sejam seguros e protegidos, e à proteção do trabalhador, especialmente pela regulamentação da saúde e da segurança no que diz respeito ao trabalho. Se as normas concretizam tais direitos constitucionais, então sua alteração em prejuízo ao trabalhador caracteriza-se como retrocesso social e ambiental, vedados, ambos, por conta da ideia de progressividade dos direitos humanos e ambientais. Nesse sentido, dentre outros, é o que defendem diversos constitucionalistas contemporâneos, como Canotilho, Fensterseifer e Sarlet, citados por Wedy[2] em artigo sobre o tema.

A intenção de limitar proteções ambientais e sociais esbarra na constitucionalidade principiológica da progressividade e da consequente vedação ao retrocesso de tais direitos. Pode haver alterações, mas desde que sejam para incremento de direitos, nunca para sua limitação em prejuízo da saúde, da vida e do meio ambiente.

No que diz respeito ao tripartismo, deve se observar que este princípio é intrínseco não apenas à ideia de normatização internacional do trabalho por meio da Organização Internacional do Trabalho (OIT), como, ainda, é o meio pelo qual as convenções elaboradas pela OIT são aplicadas nos países-membros. Como observado por Cavalheiro[3], desde sua criação no Tratado de Versalhes, a OIT conta com uma estrutura deliberativa que congrega representantes dos governos, trabalhadores e empregadores, distinta da composição de qualquer outro organismo internacional. Essa composição e modo deliberativo são previstos tanto na própria constituição da OIT quanto em todas as suas convenções, que estabelecem que as normas internacionais que a organização confecciona devem ser moduladas para aplicação nos países-membros mediante a deliberação conjunta dos representantes nacionais do governo, dos trabalhadores e empregadores.

O tripartismo acabou sendo consignado como princípio da OIT na Declaração de Filadélfia e, mais adiante, na Convenção 144, que estabelece que os países membros da OIT deverão realizar consultas efetivas aos representantes dos trabalhadores e empregadores sobre as propostas que devam ser apresentadas à autoridade ou autoridades competentes relativas à obediência às convenções e recomendações da própria organização[4]. Outra norma da OIT relevante sobre o tema é a Convenção 155, que estabelece o dever dos países-membros de formular e pôr em prática uma política nacional de segurança e saúde dos trabalhadores, conforme seu artigo 4º, parágrafo 1º. Essas tarefas devem ser objeto de consulta prévia às organizações mais representativas de empregadores e trabalhadores[5]. Conforme Cavalheiro:

O escopo da política nacional fomentada pela convenção é o de “prevenir os acidentes e os danos à saúde” relacionados ou causados pelo trabalho e reduzir “as causas dos riscos inerentes ao meio-ambiente de trabalho”, nos claros termos do § 2º do mesmo art. 4º. E o art. 5º lista as denominadas grandes esferas de ação da referida política nacional de saúde e segurança dos trabalhadores. Estas grandes esferas de ação são as especificações técnicas dos locais de trabalho, ferramentas, maquinário, equipamentos, substâncias e agentes químicos, biológicos e físicos; operações e processos; execução dos trabalhos; treinamento e qualificações; comunicação e cooperação em grupos de trabalho e empresa; e medidas de proteção dos trabalhadores e seus representantes diante da implementação das medidas da convenção.

Assim, consoante se depreende das normas da OIT, o tripartismo é o procedimento por meio do qual as normas internacionais do trabalho são confeccionadas e é, ainda, o procedimento deliberativo de implementação das convenções da OIT. As normas de saúde e segurança do trabalho têm sua confecção condicionada aos parâmetros mínimos da Convenção 155, devendo haver efetiva deliberação entre os representantes do governo, dos trabalhadores e empregadores para sua implementação.

No caso brasileiro, em função da posição constitucional dos direitos à vida, saúde, segurança e meio ambiente em geral e do trabalho em particular, a revisão de tais normas não pode implicar em extinção ou redução de direitos já previstos, sob pena de se caracterizar retrocesso social e ambiental. O emprego no Brasil não cresceu com as medidas contratuais e processuais prejudiciais aos trabalhadores já implementadas, e não se vislumbra possibilidade fática ou jurídica de que aumente com a redução da proteção à vida, à saúde e à segurança trabalhador.

A mera menção à ideia de desburocratização não atrai a ideia de crescimento econômico. Pelo contrário: se desburocratizar significar reduzir a proteção, então os acidentes aumentarão, trazendo custos tanto aos empregadores, pelas indenizações decorrentes da falta de prevenção, quanto ao erário, pelo pagamento de tratamentos pelo Sistema Único de Saúde, de reabilitação pela Previdência Social e de pensionamento em havendo incapacidade para o trabalho.

Assim, ainda que houvesse a alegada possibilidade de aumento da empregabilidade, deve se questionar quão inseguros e prejudiciais seriam esses empregos para os trabalhadores, para o meio ambiente, para as contas públicas e para a economia como um todo. Ademais, a ordem econômica constitucional é fundada também na valorização do trabalho humano, visando assegurar a todos existência digna, a qual não se compatibiliza com o aumento dos riscos à vida e à saúde do trabalhador.

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